COAGIR OU EMANCIPAR - SOBRE O PAPEL DA ENFERMAGEM NO EXERCÍCIO DA CIDADANIA DAS PARTURIENTES
ISBN: 972-8485-44-1
Autora: Alexandra Tereso
Nº de Páginas: 300
Formato: 15 X 21 cm
Editora: Formasau
Ano de edição: 2005
PREFÁCIO
Nos estudos que têm vindo a ser realizados pelos enfermeiros sobre as diferentes vertentes da sua actividade profissional, raras são as vezes em que a abordagem das suas práticas elege como perspectiva preferencial o questionamento dos direitos (civis, sociais e humanos) que lhes estão subjacentes, e as implicações destas práticas para o reconhecimento, reforço e amplificação do exercício da cidadania dos indivíduos.
Neste livro é feita esta escolha. A autora mobiliza a reflexão produzida sobre a sua experiência profissional em saúde materna e obstétrica e interpela os papéis dos enfermeiros no exercício da cidadania das parturientes. Fá-lo a partir dos pressupostos científicos das ciências sociais, nomeadamente da sociologia e das ciências da educação, usando uma abordagem crítica às formas de problematização que equacionam predominantemente a cidadania nas práticas de saúde pelo lado do doente, quer como dever, quer como colaboração, quer ainda como dependência. A colocação analítica da autora é, justamente, a de propor uma problematização que inclua a cidadania nas práticas de saúde também pelo lado dos profissionais, que realce os direitos, as modalidades de participação efectiva e as autonomias nas relações sociais entre quem trata e quem é tratado.
A pergunta \"coagir ou emancipar?\" que interroga estes papeis não pretendeu simplesmente decalcar, na relação com as parturientes, a expressão dual de uma relação bipolar de dominação e subordinação que, como se sabe, continua a marcar estruturalmente as posições dos profissionais envolvidos na organização do trabalho em saúde. Pelo contrário, numa clara recusa deste reducionismo sociológico e numa clara assumpção da prática do relativismo social e cultural na análise dos diferentes contextos de relações e práticas sociais, a autora admitiu as diferentes combinatórias que assume a relação entre os actores e as suas posições objectivas, as situações e os constrangimentos estruturais que as circundam, assim como a diversidade das ideologias terapêuticas em que se ancoram as práticas obstétricas. Redigiu, por assim dizer, um texto analíticamente complexo e epistemologicamente sensível sobre direitos e oportunidades que se entretecem no acto de dar à luz.
A leitura do índice deste livro é elucidativa sobre o itinerário seguido pela autora neste texto. Necessitando de definir com segurança os contornos sociológicos do contexto terapêutico, estabelece a linha de força organizacional que liga a sala de partos à organização fundadora da sua medicalização: Que espécie de lugar é este? O que se passa lá? Quem nele circula habitualmente e porquê? Em que tempos circula, com quem se cruza e com quem nunca se cruza? Trata-se da narrativa de uma longa observação em directo da litania dos corpos nos cenários que os inscrevem na ordem hospitalar e que, apropriadamente, a autora invoca como as analíticas dos espaços, da acção e do controlo.
Segue-se a esta uma outra narrativa que desvenda os processos que organizam a prática obstétrica hospitalar e que permitem aceder às suas categorias de pensamento, à sua produção cognitiva, às suas técnicas, aos seus discursos e aos seus significados. Os corpos das parturientes ficam circunscritos à experiência solitária de serem exclusivamente reconhecidos pela sua operatividade e eficiência fisiológicas no parto ou estes corpos e os corpos dos profissionais que sobre eles se debruçam representam envolvimentos experienciais renovados, discursos reciprocamente soletrados e saberes e conhecimentos trocados, num processo pedagógico de dois sentidos? E, desde logo, será que as práticas de todas as profissões envolvidas no parto têm o mesmo reconhecimento científico, o mesmo valor social e dispõem das mesmas possibilidades de acção autónoma? Se assim não acontecer pode-se alvitrar que as parturientes e os seus corpos representam, antes de tudo o mais, lugares de disputa profissional, de conflitos de competências, de lutas de autoridade e poder. Mas, afinal, qual o lugar das parturientes na sala de partos e qual o espaço atribuído ao accionamento dos seus conhecimentos e dos seus saberes? Qual a autonomia, legitimidade e participação concedidas a estes saberes?
Sabendo-se pela literatura produzida pelas ciências sociais que em cada parto convergem uma história de família, uma trajectória de vida, um sistema de crenças e um conjunto de saberes, será que é possível descontextualizar a experiência, esvaziar a representação, destituir o saber e desencorporar o sujeito? E de que sujeito estamos a falar? Apenas de alguém inevitavelmente preso a uma conjugalidade legítima? Apenas de um outro alguém fatalmente orientado para a heterossexualidade? Ou ainda de um outro não sexualmente promíscuo? Até que ponto é que os profissionais conseguem incluir o outro, com todas as suas opções e escolhas? Até que ponto é que abrem espaço à emergência de novas formas de protagonismo social nos cenários de prestação de cuidados? Até que ponto renunciam à tutela paternalista que exige a obediência, que reclama a colaboração a todo o preço e em qualquer condição, que consagra o silêncio, a resignação e a passividade como a atmosfera ideal de trabalho?
Até que ponto resistem à tentação de julgar e de inscrever objectivamente esse julgamento nas práticas quotidianas de trabalho?
Estas dimensões de questionamento analítico constituiram-se como um eixo estruturante do projecto de investigação que deu origem a este livro. A sua autora não teve medo de expôr o seu estatuto e identidade profissionais e de se confrontar com os pressupostos ideológicos que os fundaram. Ousou partir para um terreno que lhe é familiar, assumindo as dificuldades epistemológicas acrescidas daí resultantes. Arriscou alterar provisoriamente a legitimidade, participação e autonomia que definem a estabilidade institucional da sua presença e lhe asseguram um reconhecimento imediato e sem problemas, para em troca se apresentar com um estatuto social precário, com uma condição social instável e com uma identidade social incerta. Fê-lo cuidadosamente, com sensibilidade e com perícia, não se esquivando às inquietações metodológicas do percurso.
Por todas estas razões a leitura deste livro é intelectualmente estimulante. Constitui, seguramente para todas as profissões de saúde, um instrumento de reflexão teórica indispensável para a construção de práticas profissionais emancipadas e emancipadoras.
Lisboa, 19 de Fevereiro de 2005
Graça Carapinheiro