Entrevista: Ana Pereira de Campos
Enfª Directora do IPOFG Lx
Dados pessoais (de forma sucinta)
Idade: 54 Anos
Percurso Académico:
1- Curso Complementar dos Liceus, concluído no Liceu Nacional de Aveiro em 1969.
2- Frequência do 2º Ano da Faculdade de Letras de Lisboa, no ano lectivo de 1976/77
3- Curso de Enfermagem Geral, concluído em 1972 na Escola Técnica de Enfermeiras
4- Curso de Especialização em Enfermagem Médico-Cirúrgica, concluído em 1988 na Escola de Enfermagem Pós-Básica de Lisboa
5- Equivalência ao grau de Bacharel em Enfermagem, por despacho do Secretário de Estado do Ensino Superior de 30 de Novembro de 1990.
6- Equivalência ao Diploma de Estudos Superiores Especializados em Enfermagem, por despacho do Secretário de Estado do Ensino Superior de 30 de Novembro de 1990.
7- Master em Gestão de Empresas (MBA), concluído em 1998 no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE)
SV - Pode falar-nos um pouco mais detalhadamente sobre o seu percurso pessoal, experiência profissional, locais de trabalho, actividade associativa...
APC – Iniciei a minha carreira profissional como auxiliar de monitora, no Centro Regional de Lisboa do Instituto Português de Oncologia de Francisco Gentil em Outubro de 1973, tendo desenvolvido a minha actividade em diversos serviços do IPOFG, quer na área da prestação de cuidados, quer na área da gestão.
Entre Novembro de 1981 e Janeiro de 2003, desenvolvi a minha actividade como enfermeira chefe, em diversos serviços do IPOFG, nomeadamente medicina, cirurgia e cuidados intensivos.
Em Janeiro de 2003 fui nomeada para o cargo de Enfermeira Directora do Instituto Português de Oncologia Francisco Gentil, Centro Regional de Oncologia de Lisboa, S. A., cargo que ainda mantenho após nova nomeação em Maio de 2005.
Desenvolvi toda a minha actividade profissional no Centro Regional de Lisboa do Instituto Português de Oncologia de Francisco Gentil, tendo desempenhado funções em diferentes serviços deste Centro, como já referi.
Após terminar a especialidade, foi-me proposto participar na criação da Unidade de Cuidados Intensivos do IPOFG, projecto que abracei com muito orgulho e envolvimento. Assim em finais de 1991, integrei a Comissão Instaladora da então futura Unidade de Cuidados Intensivos do IPOFG.
Na sequência do desenvolvimento deste projecto, em Janeiro de 1992 realizei um estágio com a duração foi de 3 semanas. na Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital Universitário de Gröningen, na Holanda,.
De Março de 1992, até Junho de 1994, estive envolvida na criação desta unidade, tendo participado em todas as fases deste projecto desde a construção, passando pela organização dos recursos humanos e materiais até à sua entrada em funcionamento.Após a abertura desta Unidade em Junho de 1994, mantive-me como enfermeira chefe, funções que aí desempenhei até Outubro de 1999.
Desde esta data e até Fevereiro de 2002, desenvolvi a minha actividade profissional no Instituto de Gestão Informática e Financeira da Saúde (IGIF), em regime de requisição, integrando o grupo coordenador do Sistema de Classificação de Doentes Baseado em Níveis de Dependência de Enfermagem (SCD/E).
Em Fevereiro de 2002, regressei ao Instituto Português de Oncologia de Francisco Gentil, tendo sido colocada num serviço de Cirurgia.
Mantive a minha colaboração com o IGIF, desenvolvendo actividades de formação no âmbito do SCD/E e exercendo funções de auditora externa em hospitais utilizadores desta metodologia de gestão.
Ao longo de todo o meu percurso profissional, simultaneamente com a actividade de gestão dos serviços, desenvolvi outras actividades, nomeadamente: participação em várias comissões de análise de material e equipamento, júri de concursos, formação dirigida a alunos de enfermagem, apresentações em congressos, colaboração com a Associação Portuguesa de Enfermeiros na organização de algumas actividades de formação, participação em grupos de trabalho, dos quais saliento a minha participação num grupo de trabalho para a dinamização do Projecto: “ A Enfermagem Oncológica na Formação Básica dos Enfermeiros”, coordenado pelo Comité Permanente dos Enfermeiros da CE. Este projecto desenvolveu-se entre Outubro de 1992 e Junho de 1995 e implicou a participação em várias reuniões realizadas em Copenhague, onde estiveram representados todos os estados membro da então CE, através dos grupos de trabalho constituídos em cada país, incluindo Portugal
Um percurso profissional de cerca de 30 anos não se consegue facilmente colocar em tão poucas linhas. As vivências e a experiência adquirida, enriquecem a nossa vida pessoal e profissional, permitindo-nos desenvolver competências indispensáveis à prestação de melhores cuidados, caminhando no sentido de atingir a excelência.
SV – No seu actual cargo de direcção foi confrontada com um novo modelo de gestão, Sociedade Anónima e com gestores oriundos de outras empresas. Quer falar-nos dessa experiência? Teve concerteza vantagens e inconvenientes!
APC – Qualquer experiência, constitui sempre uma oportunidade de aprendizagem e de crescimento, contribuindo sempre para a construção do nosso percurso profissional. Foi com este espírito que aceitei assumir o cargo de Enfermeira Directora, consciente das dificuldades que iria enfrentar num período de grande mudança das nossas instituições de saúde. Gosto de desafios.
A nova filosofia de gestão dos hospitais S.A. orienta-se para a libertação dos hospitais das regras e formalismos que obstacularizam a agilização dos processos, conferindo-lhes uma maior autonomia da gestão, em moldes mais próximos da realidade empresarial. No entanto, confrontámo-nos com a inexistência de instrumentos de apoio à mudança, como por exemplo sistemas de informação de saúde, canais de comunicação eficazes que tornassem a informação mais célere, criando problemas de ausência informação no que respeita por exemplo a questões tão importantes como a empregabilidade, a insegurança dos profissionais, decorrente da precaridade do vínculo contratual e da constante instabilidade dos efectivos, não se encontrando respostas para questões como por exemplo a articulação das carreiras específicas da saúde com os contratos individuais de trabalho, ou o processo de avaliação do desempenho.
No que respeita à gestão dos recursos humanos de enfermagem, confrontámo-nos com um aumento da rotatividade dos enfermeiros, situação que tem causado grande instabilidade nos serviços, com consequente desgaste de todos aqueles que lidam constantemente com estas dificuldades. Para ultrapassar este problema, os Hospitais S.A. apresentam a vantagem de poder oferecer aos seus profissionais contratos individuais de trabalho mais aliciantes, criando vantagens competitivas em relação aos outros hospitais. Contudo, esta situação cria desequilíbrios, no que respeita às condições contratuais dos enfermeiros contratados pela empresa S.A. e os funcionários públicos, dificultando por vezes as relações dentro da própria equipa de enfermagem.
Considero que a Unidade de Missão teve um papel importante como impulsionadora de vários projectos, que de certa forma vieram imprimir alguma dinâmica ao funcionamento dos hospitais e refiro-me concretamente ao processo de acreditação pela Joint Commission International
SV – A passagem para o modelo de Empresa Pública como está a decorrer?
APC – O decreto-lei n.º 93/2005 transforma os Hospitais Sociedades Anónimas em entidades públicas empresariais, com efeitos a partir da data de entrada em vigor dos respectivos estatutos. No entanto, não tenho conhecimento que ao nível dos hospitais se estejam a efectuar quaisquer procedimentos no sentido da transformação neste novo modelo.
SV – Como Enfermeira Directora como lida com a rotação actual do pessoal de enfermagem. As equipas têm pouca estabilidade ou consegue-se mesmo assim alguma?
APC – A escassez de enfermeiros com que ao longo dos anos nos temos confrontado, tem de certa forma contribuído para uma maior mobilidade dos enfermeiros relativamente a outros profissionais da área da saúde, uma vez que existindo carência, as oportunidades de escolha do local de trabalho surgem facilmente. Apesar deste contexto, a expectativa dos enfermeiros era o ingresso no quadro da função pública, pelo que lhes era vantajoso fixarem-se nas instituições, o que lhes permitia adquirir alguma antiguidade, factor habitualmente considerado como um dos critérios de selecção nos concursos de ingresso.
O estatuto jurídico dos Hospitais S. A., veio alterar esta realidade e os enfermeiros viram-se confrontados não só com a impossibilidade de ingressar nos quadros da função pública como também com o desconhecimento do seu futuro profissional em termos de progressão numa carreira que entretanto deixara de existir para quem iniciava uma vida profissional. Neste contexto, sem quadro e sem oportunidade de carreira profissional e perante um mercado com ofertas variadas de emprego, encontram-se reunidas as condições facilitadoras da mobilidade, na procura de melhores contratos e de melhores condições de trabalho. Acresce a esta situação, o facto dos hospitais não empresarializados e das sub-regiões de saúde continuarem a abrir concursos internos de ingresso, originando a procura destas organizações pelos enfermeiros já com vínculo à função pública. Ainda para além destes factores, tem-se verificado que os enfermeiros recém formados nas escolas do norte do país, no momento em que terminam a sua licenciatura, não encontrando oportunidade de trabalho nos hospitais da sua área de residência, procuram o primeiro emprego nos hospitais da área de Lisboa. No entanto, logo que lhes surge oportunidade de emprego perto de casa, regressam, abandonando aquele que foi o seu primeiro emprego. Situação semelhante acontece com os enfermeiros de nacionalidade espanhola, cujo primeiro objectivo é obter trabalho no país natal, não tendo na sua maioria, intenção de se fixar definitivamente em Portugal. Recentemente a revista da Ordem dos Enfermeiros publicou um artigo interessante que aborda com clareza as implicações da migração dos enfermeiros espanhóis. O IPOFG debate-se com esta problemática ainda com maior agudeza, por ser uma instituição oncológica conotada com o sofrimento e a morte. A insuficiente preparação académica dos enfermeiros para lidar com estes doentes, contribui para que o Instituto não seja um local de trabalho atractivo para os jovens profissionais.
Gerir a instabilidade causada por esta intensa mobilidade, exige alguma criatividade na procura de estratégias de atractividade e retenção dos enfermeiros na instituição. Estas estratégias têm passado pela oferta de contratos de trabalho mais competitivos, processo de integração nos serviços adaptado às necessidades individuais de cada enfermeiro, colocação dos enfermeiros nas suas áreas de trabalho preferenciais, criação de oportunidades de formação em enfermagem oncológica e em outras áreas consideradas de interesse.
Acredito que esta rotatividade e estes fluxos migratórios irão diminuir rapidamente, à medida que a carência existente for satisfeita, situação que não parece estar muito longínqua pois tem-se vindo a notar um aumento da oferta de cursos de licenciatura em enfermagem.
SV – Há a noção de que os espaços de trabalho dos enfermeiros ainda são muito pouco multidisciplinares. Quais as estratégias que tem utilizado no seu Hospital para tornar a disciplina de enfermagem mais utilizada?
APC – Essa noção existe e é real, mas parece-me que cabe aos enfermeiros, alterar este status quo. Se bem que por vezes seja difícil intervir nos comportamentos e nas práticas individuais, quando a cultura dominante não facilita nem reconhece os benefícios da mudança, não podemos assumir atitudes conformistas. Temos que identificar claramente onde é que se encontram os obstáculos que verdadeiramente impedem os enfermeiros de assumir o seu papel nas equipas multiprofissionais. Tem sido minha preocupação que o corpo de Enfermagem integre os grupos de trabalho da instituição, tornando-os verdadeiramente multiprofissionais e multidisciplinares. Por outro lado irão decorrer em Outubro as 4ªs Jornadas de Enfermagem do IPOFG – CROL, S.A., cujo tema se prende com a reflexão e a sensibilização para a problemática do “ Enfermeiro na Multidisciplinaridade em Oncologia”. Este é daqueles caminhos que só se faz caminhando.
SV – O Hospital vai passar por um processo de acreditação? Como vai decorrer? Quer-nos falar desse processo?
APC – O IPOFG, iniciou este ano o caminho para a acreditação segundo os padrões da Joint Commission International.
É genericamente um sistema de Garantia de Qualidade que não vive espartilhado em normas estanques segundo as quais os hospitais se devem reger com vista à certificação, mas antes na exigência do cumprimento de padrões ou standards (do modo que cada instituição considerar mais adequado à sua realidade) que requerem ser evidenciados por elementos mensuráveis. De salientar que todo o modelo se encontra centrado no doente, em termos de filosofia, processos e hierarquização de valores e o objecto de avaliação é sempre a consequência dos vários actos/episódios de cuidados.
Ou seja, é um modelo que permite a individualização do processo e a sua adaptação à realidade e ás particularidades de cada hospital, assegurando, apesar disso, que estão garantidos os mínimos aceitáveis para que possa ser uma instituição acreditada segundo os princípios da JCI.
Este processo já foi iniciado no ano passado por alguns hospitais, mas o nosso, conjuntamente com mais seis iniciou-o agora.
Foi criado pelo CA um Núcleo de Acreditação, responsável pela coordenação do processo e nomeados 11 grupos multiprofissionais que se encontram responsáveis pelo desenvolvimento das acções necessárias à satisfação das exigências dos vários padrões.
Em Maio de 2005, fomos sujeitos a uma auditoria externa que teve a duração de cinco dias, efectuada por uma equipa de auditores americanos (médico, enfermeiro e administrador), com o objectivo de se proceder a uma avaliação inicial que nos ajudasse a identificar o grau de conformidade em relação a cada norma e também a elaborar o plano de acção para os próximos meses. Neste momento encontramo-nos na fase de implementação do plano de acção, prevendo-se que dentro de um ano sejamos sujeitos a uma auditoria simulada, que decorrerá em moldes semelhantes à auditoria inicial e que nos irá ajudar a implementar acções correctivas. O processo culmina com a auditoria final para a acreditação.
Apesar da fase inicial em que nos encontramos, a transversalidade do trabalho a desenvolver lança desafios que serão diferentes dos processos organizacionais verticais clássicos, pelo quer o acompanhamento e envolvimento de todo o Conselho de Administração é imprescindível ao longo do projecto.
Temos pela frente uma oportunidade de melhoria única e urge saber aproveita-la, pelo potencial de intervenção coordenada que este projecto contém.
SV – Os sistemas de informação informatizados são essenciais nas grandes organizações, mas com o processo de acreditação eles tornam-se nucleares. Já pensaram na solução global e na da área de enfermagem? Estão a pensar usar linguagem classificada?
APC – No que respeita à enfermagem, temos planeado iniciar ainda no corrente ano, formação sobre a Classificação Internacional para a Prática de Enfermagem (CIPE) e posteriormente introduzir a utilização do Sistema de Apoio à Prática de Enfermagem (SAPE). Neste momento, vamos iniciar a utilização do Sistema Informático de Classificação de Doentes (SICD/E), já na sua nova apresentação, ou seja, integrado no SAPE.
Não tenho qualquer dúvida que temos que caminhar para a utilização de um Sistema de Informação, que nos permita produzir informação sistematizada que evidencie os ganhos em saúde, sensíveis aos cuidados de enfermagem. Nesta perspectiva, emerge a necessidade dos enfermeiros se dedicarem à investigação na área dos Sistemas de Informação, que têm que ser hoje um meio para o desenvolvimento do corpo de saberes da profissão.
SV – Em termos globais e enquanto enfermeira o que acha dos cursos de especialização existentes? São suficientes para responder às necessidades da população e das organizações?
APC – Considero que os actuais cursos de especialização não estão adequados às necessidades da população, nem das organizações, sendo que a interrupção da oferta destes cursos, levou a que os enfermeiros na incerteza quanto ao futuro da continuidade da sua formação, optassem por fazer cursos de pós-graduação e mestrados em diversas áreas, os quais não lhes permitem obter a categoria de enfermeiro especialista. Existe uma aparente descoordenação entre o legislado e as reais necessidades das organizações. Um exemplo do que acabo de afirmar é o caso da inexistência da especialidade em enfermagem oncológica, tendo em consideração que o cancro é hoje a segunda causa de morte, situação que determinou a elaboração do actual Plano Oncológico Nacional. É verdade que a criação da pós-graduação em enfermagem oncológica é um enorme passo em frente, no entanto é paradoxal que as pessoas que já obtiveram esta pós-graduação, tendo adquirido certamente competências que irão reflectir-se na melhoria dos cuidados de enfermagem, se vejam impedidas de progredir na sua carreira profissional. Considero que de igual modo deveria ser equacionada a criação de uma especialidade dedicada à área dos cuidados paliativos.